“Melhor mil ratos na cama do que um turco no porão”

 

Através do livro de Wallraf, o preconceito sai dos porões em que a sociedade o esconde

 

 “Estrangeiro, robusto, procura qualquer tipo de trabalho, mesmo que seja muito pesado e sujo, mesmo que paguem pouco.” O anúncio foi publicado em diversos jornais da Alemanha no ano de 1983 pelo turco Ali Sinirlioglu, com efeito: Ali foi chamado para vender sua força de trabalho em empregos tão sujos e mal-pagos como jamais poderia ter imaginado. Ao final de dois anos de trabalho, a saúde do Gastarbeiter – modo pejorativo como os alemães se referem aos trabalhadores imigrantes - já estava seriamente prejudicada.

 

A situação relatada acima passaria despercebida, como a de milhares de imigrantes na Alemanha na década de 80, se Ali não fosse na verdade o repórter alemão Günter Wallraf, escondido atrás de lentes escuras, de uma peruca castanha e de um idioma alemão falado sem artigos e sem preposições. O disfarce fez Wallraf sentir na pele o desprezo e a crueldade com que seus conterrâneos tratam estrangeiros, especialmente os turcos. O relato das experiências vividas sob a identidade de Ali viraram o  best-seller Cabeça de Turco, que retrata, nas palavras do próprio autor, “a frieza glacial de uma sociedade que se julga bastante sensata, soberana, incontestável e imparcial”.

 

A imigração na Alemanha teve seu “boom” nos anos 70, quando aproximadamente 20% da população do país era de fora. Ainda assim, por muitos anos a sociedade alemã rejeitou o status de “país de imigrantes”, recusando-se a interagir com os estrangeiros que chegavam principalmente da Turquia e a da Europa Oriental, mas também da Grécia e Espanha . Na época em que Wallraf fez sua reportagem o país atravessava um período de recessão econômica e, como se sabe, situações adversas são terreno fértil para o desenvolvimento de pensamentos xenófobos e preconceituosos.

 

Porém, nada justifica o ódio dispensado ao jornalista sob disfarce. A discriminação de minorias étnicas não é particular da sociedade alemã. Em muitas passagens do livro, Ali parecia ser mais um nordestino na selva de pedra paulistana: foi inúmeras vezes acusado de ser um ladrão de empregos e aproveitador de uma suposta riqueza do local para onde migrou. É muito fácil atribuir o desemprego a quem é de fora; no entanto, os alemães esquecem que nem eles mesmos fariam os serviços a que os estrangeiros se sujeitam. Ali ouve o seguinte de um alemão, enquanto está limpando a poeira tóxica de dentro de máquinas da empresa Thyssen: “Vocês são burros! Como é que alguém consegue trabalhar no meio de tanta sujeira?”.

 

Na verdade, ninguém aguenta: os Gastarbeiters dos anos 80 suportavam trabalhos desumanos porque sabiam que havia muitos desejosos de estar em seus lugares, além de não conseguirem nenhum emprego menos insalubre devido à marginalização que sofrem. No entanto, seus pulmões não são mais resistentes do que os dos alemães e, em questão de meses de trabalho em contato com a fumaça e o pó, contraem bronquite, como qualquer outro.  

 

A Alemanha hoje reconhece precisar de imigrantes, que atualmente representam aproximadamente 8,8% da população do país. Em contrapartida, o número de pessoas que emigraram cresceu. Esta tendência vem preocupando autoridades que reconhecem nos imigrantes um imenso contingente de mão-de-obra em vista do envelhecimento da população alemã. Assim, foram implantadas políticas de integração dos estrangeiros à sociedade germânica, como cursos que os ensinam a língua alemã e características da cultura local.

 

Todavia, nenhuma destas medidas surtirá efeito se os estrangeiros ainda não se sentirem confortáveis em um país que os hostiliza. Depois de 20 anos da denúncia de Wallraf, mais da metade dos turcos ainda se sentem convidados malquistos na Alemanha, segundo pesquisa publicada pelo semanário Die Zeit de 13/03/2008. É evidente que um livro não é suficiente para mudar toda uma cultura xenófoba enraizada não somente na sociedade alemã, mas na Europa como um todo. Contudo, o relato do personagem Ali escancarou o preconceito de uma sociedade hipócrita, que esconde seus ratos em porões quase inacessíveis – exceto para repórteres destemidos e ousados, como Wallraf e seu personagem Ali Sinirlioglu.

 

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